Comparado a ‘Corra!’, obra restaurada revive cinema negro do Brasil

Em 1970, o cineasta negro Odilon Lopez, mineiro radicado no Rio Grande do Sul e morto em 2002 aos 61 anos, lançou o longa-metragem “Um é Pouco, Dois é Bom”, um dos primeiros filmes com imagens urbanas da cidade de Porto Alegre.

O feito, raro para a época, o coloca ao lado de realizadores como Adélia Sampaio, Antonio Pitanga, Haroldo Costa e Zózimo Bulbul, cujas filmografias vêm sendo redescobertas, especialmente durante a última década, pelas gerações mais novas. Assim como Cajado Filho, que já nos anos 1940 reinventava a chanchada brasileira.

Entretanto, o primeiro longa de Odilon segue pouco conhecido e estudado —assim como o restante de sua obra, que inclui ainda curtas-metragens e breves atuações em chanchadas nos anos 1950 e 1960. A única cópia disponível para circulação estava depositada na Cinemateca Capitólio, instituição de Porto Alegre dedicada à preservação e difusão do audiovisual brasileiro.

E, num país que ainda acumula inúmeros desafios relacionados à preservação audiovisual, todos conhecem os riscos vinculados à ampla exibição de um material em película.

No ano passado, a digitalização do material foi possível por uma parceria entre a cinemateca, a Indeterminações, plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, e a Mnemosine Serviços Audiovisuais, empresa especializada em serviços de preservação e restauração, com recursos do governo de Porto Alegre e do Itaú Cultural. O lançamento do material está previsto para o primeiro semestre deste ano.

O filme havia passado por uma digitalização parcial em 2006, que recuperou apenas um dos dois episódios que compunham o filme —a decisão peculiar fez com que o longa de Odilon passasse a ser erroneamente lembrado como um média-metragem.

A primeira parte, intitulada “Com Um Pouquinho… De Sorte”, é protagonizada por um casal branco de classe média baixa, vividos por Araci Esteves e Carlos Carvalho. Recém-casados, eles vivem numa casa alugada e aguardam, com alegria e tensão, o nascimento de uma criança. Uma ordem de despejo ameaça a paz de ambos e acaba levando Jorge aos extremos.

Na segunda, “Vida Nova… Por Acaso”, um homem negro —Crioulo, interpretado pelo próprio Odilon— e outro branco, papel de Francisco Silva, que acabaram de sair da prisão, tentam ganhar a vida pelas ruas do centro de Porto Alegre. Entre um furto e outro, Crioulo conhece a Loira —Angela Grosser— e se envolve em uma história violenta num relacionamento interracial.

Em cada uma das histórias, há momentos em que os casais visitam parques ao ar livre, cenas que simbolizam a união entre eles. De um lado, Maria e Jorge celebram, felizes, o relacionamento. Já no passeio de pedalinho entre Crioulo e Loira, o encontro figura o início de uma tragédia tão violenta como aquela que encerra o primeiro episódio.

Nesse sentido, as duas sequências conectam as partes do filme, ainda que de maneira opositiva. Com certo tom pessimista, o longa de Odilon Lopez se posiciona criticamente em relação às marcas da modernização em centros urbanos, às desigualdades sociais e, no caso da segunda parte, ao racismo.

As complexas nuances do namoro entre Crioulo e Loira fizeram com que o crítico Luiz Joaquim, após uma exibição na Mostra de Cinema de Ouro Preto, chamasse o filme de “Corra!” brasileiro, numa referência ao terror de 2017 dirigido por Jordan Peele.

Assim como no filme do vencedor do Oscar de melhor roteiro original, a garota aparentemente inocente leva o homem negro para dentro de sua casa, expondo-o a perversas situações de preconceito racial.

A digitalização de uma obra tão singular como esta pode estimular não só os estudos sobre a historiografia do cinema negro e brasileiro, como coloca diante de nossos olhos um filme em que um diretor negro, para além de pensar as subjetividades pretas em tela, também se lançou a criar e representar a branquitude.

A criação da nova cópia digital é compartilhada com grande entusiasmo, especialmente pela utilização dos negativos originais em película como matrizes de digitalização, material que estava depositado desde 1989 na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, em excelente estado de conservação.

Com isso, como explica a preservadora audiovisual Débora Butruce, coordenadora técnica do processo de digitalização, torna-se possível corrigir a deterioração cromática —isto é, o esmaecimento ou perda dos canais de cor— que estava visível na cópia de exibição.

A expectativa é que a versão em 4K ressalte a potencialidade estética da fotografia, cenografia e figurinos do filme, colaborando para uma marcante experiência dentro da sala de cinema.

“Um É Pouco, Dois É Bom” também nos fornece elementos que colaboram para um debate mais amplo em torno das complexas disputas em torno da ideia de origem ou fundação do cinema negro no Brasil, nos distanciando da chancela do pioneirismo para nos estimular a investigar a pluralidade de representações e realizações cinematográficas de cineastas negros e negras.

O processo de digitalização ainda reservou uma grande surpresa. Algumas sequências dos negativos originais se encontram mais longas ou com uma ordenação de planos diferentes da cópia mencionada.

Não se sabe qual teria sido a motivação desses cortes posteriores e se eles foram feitos pelo próprio diretor. O que conta é que esse fato pode trazer novidades importantes para se pensar o contexto histórico da época e o cinema feito por um realizador negro numa região do país que é, ainda, marcadamente elitista.

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