Documentário de Renato Barbieri traz histórias de tesouros expatriados

A sensação do impacto de ver uma trombeta de confecção Munduruku (a nação presente em regiões como Amazonas, Mato Grosso e Pará) com dois metros de comprimento, feita em madeira, e complementada por tecidos e penas, não se desprende do cineasta Renato Barbieri. Ele pesquisou acervos de riqueza incalculável para a realização do longa-metragem Tesouro Natterer, que entra para o circuito dos festivais em grande estilo, como representante do cinema brasiliense no Festival É Tudo Verdade, estendido até 13 de abril. O filme trata sobre a maior concentração (no exterior) de acervo etnográfico com peças indígenas do Brasil.

A longevidade da trombeta, citada anteriormente, é exemplar para ter a dimensão do material registrado no documentário. “Constatar que, na idade de 200 anos, ela permanece intacta e emitindo sons! Isso depois de viajar praticamente um ano entre o Brasil profundo e Viena, sendo transportada no lombo de mula, de canoa (com enfrentamento de cachoeiras), navio transatlântico e, por fim, acoplada em carroça dentro da Europa”, demarca Barbieri. O levantamento do filme inclui 50 mil peças preservadas em dois museus de Viena (Áustria): o Museu de História Natural e o Weltmuseum Wien.

“Os museus austríacos têm uma enorme responsabilidade pela conservação da Coleção Natterer até hoje e isso se deve a diversas técnicas de conservação adotadas”, explica o diretor. Peças de “cair o queixo” passaram pelo afiado crivo curatorial de Natterer. “Muito dessa produção cultural riquíssima se perdeu ao longo do violento processo de ocupação do território nacional que se processa, desde então, e até hoje”, comenta o mesmo diretor de Pureza, Servidão e Bianchetti. “Johann Natterer era zoólogo e integrou a Expedição Austríaca com a missão de coletar peças naturais para os museus austríacos, ou seja, animais, insetos, mostruário de madeiras e minerais”, explica Barbieri. Uma digressão de percurso levou o pesquisador a contatar povos indígenas.

Impressionado pela qualidade técnica e artística de objetos, rituais e instrumentais, de dezenas de povos, ele se empenhou na formatação da maior coleção etnográfica do Brasil no mundo. Peças que representam 68 povos indígenas, com suprema relevância para esses povos originários remanescentes, guardam preciosidades coletadas há mais de 200 anos. “Tudo foi coletado entre 1817 e 1835 — foram mais de 50 mil peças enviadas em 11 remessas. Cada remessa tinha média de 5 mil peças enviadas em grandes caixas de madeira fechadas com couro de boi e calafetadas, a fim de espantar umidade”, explica o cineasta. Num chocante contraste, em 2018, o incêndio no Museu Nacional (RJ) trouxe irreparáveis perdas para bens culturais revertidos em cinzas. “Não sabemos quais peças se perderam no trágico incêndio. Mas sabemos que foram 90 peças doadas por Natterer a D. Pedro II em sinal de gratidão pelo apoio recebido e que tais peças estariam na reserva técnica da instituição”, comenta Renato Barbieri.

O documentarista celebra a possibilidade de intervir num resgate cultural relevante e que atesta ser fruto de política pública de fomento à indústria cinematográfica do Brasil. “Sabemos que o país se debate, desde sempre, com a questão da memória e que conservação nunca foi nosso forte. O que existe é graças ao esforço imenso de agentes públicos ou da sociedade civil, em modelo abnegado. Mas temos de fortalecer, e muito, a visão de preservação da memória. A história de um povo está intimamente ligada à sua soberania. É evidente que o Brasil nasceu para ser uma colônia, e não uma nação. Mas é certo também que estamos, ainda no século 21, construindo uma nação. Sem memória não há história. E sem história não há nação”, conclui.

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